A não violência como alicerce da paz
A expressão “não violência”, popularizada no século XX pelo líder pacifista
Mahatma Gandhi e tão em voga nos dias atuais – especialmente em círculos de yoga,
meditação, estudos de paz, comunicação não violenta, mediação de conflito e justiça
restaurativa, entre muitos outros – é bastante antiga.
Não violência, ou ahimsa, é o primeiro dos Yamas compilados no Yoga Sutras
de Patañjali (provavelmente escrito entre 200 A.C. e 200 D.C.), e também um dos
primeiros valores essenciais mencionados por Sri Krishna a Arjuna na Bhagavad Gita,
texto que compõe o épico indiano Mahabharata, passado oralmente de mestre para
discípulo há mais de 5.000 anos.
De acordo com Patañjali, o yoga é formado por oito partes, oito linhas mestras
que nos guiam no caminho para a liberdade do espírito. A primeira dessas linhas
mencionadas por ele são os Yamas, regras de conduta do ser humano com a
sociedade. Esses se referem aos nossos padrões éticos e senso de integridade, com
foco em nosso comportamento e na contenção dos impulsos naturais. São práticas
universais que se relacionam com a máxima “não faça aos outros o que você não
gostaria que fizessem com você”.
Com essa máxima em mente, é natural que o primeiro Yama seja ahimsa, ou
não violência. Essa contenção dos nossos impulsos naturais no âmbito da violência
abrange tanto o nível físico como mental para que não causemos danos nem a nós
mesmos nem aos outros por quaisquer meios, sejam eles atos, palavras ou
pensamentos.
Contudo, precisamos tomar cuidado para não enxergarmos na não violência
uma desculpa para a passividade, para a não ação e, consequentemente, para a não
transformação. Pelo contrário. A não violência deve ser ativa, tal qual pregava Gandhi,
e o primeiro passo deve ser a partir de nós mesmos.
É através da auto-observação ativa e atenta que conseguimos perceber as
nuances de violência que existem dentro de nós e que se manifestam por meio de
atos, palavras ou pensamentos.
Essas nuances podem se revelar em pequenos atos cotidianos, como ocorre
ao nos criticarmos duramente, sem demonstrarmos compaixão para conosco mesmos;
ao forçarmos demais o nosso corpo em uma prática de asanas, indo além dos nossos
limites mesmo que sintamos dor; ou quando não queremos ir a algum lugar ou não
queremos fazer alguma coisa, mas acabamos optando por falar “não” para nós
mesmos em vez de falar “não” e/ou impor limites para os outros. Essas situações
corriqueiras certamente fazem parte da vida da maioria – senão de todos – nós.
Também podemos observar essa agressividade latente (ainda que talvez
velada) em outros aspectos do nosso cotidiano, como em nossas reações com
pessoas que amamos e com desconhecidos, em como agimos com confrontos ou
frustrações, em nossa escolha alimentar, na maneira como tratamos os animais, como
cuidamos do meio ambiente, como escolhemos produtos e materiais sustentáveis e
que sejam livres de sofrimento – seja ele de animais ou de pessoas.
Só depois de nos atentarmos para nós mesmos, para as nossas atitudes,
compreendendo quais são os desejos e propensões que nos levam a agir, pensar ou
falar de forma agressiva, é que podemos levar nosso olhar para o outro. E ao fazê-lo,
devemos cuidar para sermos compassivos, sempre nos questionando o que nós
mesmos teríamos feito se estivéssemos em tal situação. Assim, nos tornamos menos
críticos e menos sedentos por punição e passamos a ver os outros como seres
humanos igualmente falhos, tentando lidar com acontecimentos e emoções com as
ferramentas, o conhecimento e a clareza disponíveis no momento. Enxergar a
humanidade nos outros faz com que nos percebamos como iguais apesar de nossas
idiossincrasias; além disso, passamos a ver além das nossas próprias necessidades,
compreendendo aquelas dos que estão à nossa volta.
Quando isso acontece, tendemos a agir com generosidade tanto com os outros
quanto conosco mesmos. A não violência então ultrapassa as barreiras do nosso ser e
é capaz de promover mudanças ao nosso redor, influenciando nosso círculo familiar,
profissional ou social, por meio do acolhimento da necessidade do outro, da percepção
daquilo que ele está realmente sentindo abaixo daquela superfície agressiva.
Somente quando nos percebermos iguais aos outros, compassivos, empáticos,
em comunhão com o todo, será possível haver paz. Esse trabalho deve ser feito de
dentro para fora, com a auto-observação de nossos atos, palavras e pensamentos e
contenção dos nossos impulsos violentos, para então transbordar e levar a compaixão
e a paz para todos que nos cercam.
Texto escrito pela aluna Sheila Maria Ribeiro Saad,
para a formação on-line em Hatha Vinyasa Yoga, turma de 2021.
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